SENTIDO  INSTAURADOR  DE  SÃO  PAULO

MIGUEL REALE

 

                   O meu caro amigo Gilberto de Melo Kujawski, com o seu fino espírito diversificado e instigante, publicou, há tempos, neste jornal, belo artigo no qual indaga das razões pelas quais a cidade de São Paulo, em virtude de sua violenta e desordenada expansão, teria perdido sua identidade, por ter comprometido valores que antes a caracterizavam, deixando, assim, de ter fisionomia própria como a que distingue outras capitais, como Rio de Janeiro, Salvador, Recife ou Brasília.

                   Muito embora concorde com a condenação de certas aberrações que vieram comprometer esteticamente nossa cidade, não compartilho das conclusões melancólicas e desesperançadas do conhecido ensaista, por parecer-me que o estudo do tema aliciante por ele proposto transcende o aspecto por assim dizer urbano ou urbanístico, para precisar ser situado no âmbito de uma visão histórico-cultural. É essa forma de compreensão que, a meu ver, explica por qual motivo prevalece, nos demais Estados da federação, a admiração pela urbe paulistana, nela encontrando algo de próprio.

                   Além da falta de consciência citadina, o que os moradores paulistanos perderam é o sentido instaurador que, apesar de tudo, tem acompanhado sempre os momentos culminantes ou decisivos da história da Capital paulista. À primeira vista parece que em São Paulo tudo está desligado, estando as partes em conflito umas com as outras, mas eu penso que sua unidade perdida é reconquistada quando posta em função de seu processo histórico, do qual é inseparável sua visão urbanística.

                   São Paulo é, antes de tudo, uma escola, como o demonstra o Pátio do Colégio, onde Nóbrega e Anchieta nos comunicaram o significado básico do “ensino fundamental”. Foi aí que nasceu o vilarejo paulistano devendo ser visto como um centro de visitação cívica, mesmo porque ali se instalaram, por longo tempo, os poderes estaduais.

                   Depois, ia ter começo um novo ciclo existencial, quando a gente paulistana sentiu a atração do caminho indicado pelo curso do rio Tieté. Do posto de Pinheiros partiram os bandeirantes para escravizar índios e descobrir esmeraldas, entrando, assim, em conflito com a Companhia de Jesus, protetora dos indígenas sob as asas da religião e da cultura cristãs. É com esses olhos que devemos ver o estupendo monumento das bandeiras de autoria de Victor Brecheret, logo no início do Parque Ibirapuera. De costas voltadas para o Oceano Atlântico, muitos se expressando na língua geral dos tupis, ou falando o dialeto caipira, uma espécie de português nacionalizado, tinha início a conquista de um território continental, ultrapassando de muito as tímidas linhas do Tratado de Tordezilhas.

                   Tempos depois, à cidade paulistana, pouco mais que uma aldeia, veio bater o jovem príncipe  D. Pedro para proclamar, seguindo conselhos de seu pai e de José Bonifácio de Andrada e Silva, a independência do Brasil, como o lembra o majestoso monumento do Ipiranga, do escultor italiano Ettore Ximenes, outro ponto de romaria cívica, recordando a instauração da soberania política brasileira. Como se vê, em São Paulo,  o que é local sempre se confunde com o nacional, compondo historicamente sua fisionomia.

                   Poucos anos depois, teríamos outro ponto de partida, com a fundação dos Cursos Jurídicos por nosso primeiro imperador, não sendo as Arcadas do largo de São Francisco apenas uma Faculdade de Direito, mas também a Casa das Letras e das demais Ciências humanas, visto não termos ainda instituição universitária que delas cuidasse. É esse o sentido da visita ao lugar onde vivem, parede e meia, a Escola das leis e o Convento franciscano, cuja biblioteca passou a pertencer àquela.

                   Com o advento da era industrial, nas últimas décadas do século 19, São Paulo encontrou mais um rumo essencial de seu destino, coincidindo essa época com as grandes imigrações, das mais diversas etnias que vieram implantar em Piratininga o surto do progresso. O pluralismo demográfico-empresarial iria caracterizar para sempre a capital do planalto, embebendo-se a terra de todos os suores e sabores. O feio mas significativo Palácio das Indústrias marca esse evento, assim como a Hospedaria dos Imigrantes assinalara a passagem sobretudo de italianos e espanhois para os cafezais do interior do Estado. Depois viriam árabes, japoneses, poloneses e tantos outros.

                   Após ter-se tornado o polo por excelência do desenvolvimento econômico-financeiro do Brasil, numa complementaridade exemplar, os ideais de uma nova sensibilidade artística e literária, já esboçada na década anterior,  instauram-se aqui, em 1922, com a Semana de Arte Moderna, sendo escolhido, desafiadoramente, como centro de irradiação, o neo-clássico Teatro Municipal, onde, no acertado dizer de Sergio Buarque de Holanda e de Manuel Bandeira, acontecia o novo descobrimento do Brasil, passando os temas nacionais a merecer tanta atenção como a antes dedicada apenas à arte e às letras européias.

                   Poucos anos depois, outra instauração do mais alto significado ocorria, em 1934, com a criação da Universidade de São Paulo, a primeira a expressar, de maneira universal e positiva, os valores essenciais do ensino superior. Símbolo desse acontecimento é a torre da Cidade Universitária da USP, concebida por Rino Levi, com duas paralelas estruturas de cimento armado, uma representando as ciências naturais e a outra as humanas, em cujo topo um relógio marca o tempo existencial da cultura. Ao erguer esse monumento, no meu segundo reitorado, determinei que ao pé dele  se esculpisse a frase: “no universo da cultura o centro está em toda parte”.

                   Ora, esse lema, mutatis mutandis, bem pode ser aplicado à Capital de São Paulo que se esparramou do Jaraguá ao Jabaquara e além deles, policêntrica e poliédrica, com um número imenso de bairros, cada um deles com sua zona central, numa espécie de federação de cidades.

                   Outra característica da Capital paulistana são os seus arranha-céus, sendo a cidade do mundo que mais os possui, vários deles de estilo ultra-moderno, como os que se erguem na Avenida Paulista ou entre a Avenida Luiz Carlos Berrini e a margem direita do Canal do rio Pinheiros.

                  Eis aí, em largos traços, como vejo São Paulo, tão complexo e plural como a terra e a gente do Brasil, cujos valores conflitantes sintetiza em sentido de instauração e de dinamismo. Sua fisionomia é, pois, a que lhe advém da história, bem distinta das demais capitais do País.

 

                                                                                     22/06/2002